Ela chegou no meio da chuva. Boné aba reta, batom roxo, cara de playba, jeito de playba, voz de playba. “Oi vc que é a Marina?” “Sou sim. Como vc chama?” “Juliana”. E o mundo desabou em cima da gente. A chuva castigou forte naquele dia, todo mundo saiu correndo, foi um Deus-nos-acusa que ficou na história dos picnics chuvosos que eu costumo organizar.
Alguém pegou o telefone dela e a gente começou a conversar. (Whatsapp, obrigada por unir as pessoas tão fácil e rapidamente.) E eu descobri que ela já estava fazendo hemodiálise.
“Caralho Ester, ela já faz hemodiálise”
Será que ela nunca se cuidou? Porque ela chegou nessa fase? Porque ela ficou assim? Será que dói? Nossa, ELA NÃO TINHA CARA DE QUEM FAZ HEMODIALISE.
PÁ! TAPA NA CARA.
É Marina.... se vc está com toda essa curiosidade sobre ela porque simplesmente vc não pergunta? Pq eu acho que as pessoas tem que querer contar alguma coisa pra mim, ainda mais algo tão “sério” quanto isso.
E ela quis. Foram mais de 6 horas na praça de alimentação de um shopping. Ela me contou tudo. Foi gravado. Vai entrar para o segundo livro, na íntegra. Sim, ela abriu pra mim e para Ester um pouco da vida dela....
E quando eu escolho “um pouco” da vida dela é porque mesmo durante 6h onde ela nos contou TUDO sobre a hemodiálise e o processo vivido para se chegar nisso, eu afirmo que foi só um pouco, pq a Juliana não é só alguém que faz hemodiálise.
Aprendi em pouco tempo a admirar a força de vontade de viver, de lutar, de não desistir, de não se entregar, de tentar fazer o melhor que ela pode fazer por ela mesma. Aprendi tanta coisa q eu resolvi escrever esse texto depois de passar um dia todo com ela. Passamos o domingo juntas, como qualquer amiga faria, como duas meninas da mesma idade com vontades parecidas e com afinidades comprovadas, e gente tinha “tretado” uns dias atrás, um mal entendido que uma sopa e duas coca zero (só com gelo, sem limão por favor) resolveram a parada.
Ela acabou de sair daqui, deve estar dirigindo pra casa dela sentindo enjoos não diagnosticados ainda, talvez ela pare no acostamento da marginal para vomitar o que acabamos de jantar, talvez ela tenha dores de cabeça causadas pela pressão alta ou talvez ela só fique bem, simplesmente bem.
Ela deve pesar uns 40kg e medir um metro e trinta (zoeira, deve ser 1,50). Fisicamente é de uma fragilidade meiga e elegante (pois eu acho meninas pequenas e magrinhas bem bonitas), mas toda essa fragilidade, jeitinho fofo, vozinha mansa, cabelo loiro, roupas de grife, TUDO ISSO cai por terra quando vc vê essa mina comendo ovo frito com calabresa no prato feito aqui de Pirituba. De frágil ela não tem nada. Também não vou usar o termo “guerreira” que muita gente gosta de usar como forma de nominar alguém que luta pela vida, e não vou usar essa palavra pq a Ju não está numa guerra. E é aqui que eu queria chegar com vocês.
Ela não travou uma batalha. Não deu inicio a uma guerra e por isso ela não é uma guerreira.
Escolhi uma palavra para ela hoje: amante da vida.
Ela simplesmente ama viver, e não é a hemodiálise que vai acabar com esse desejo grandioso que ela tem dentro do peito.
Os motivos pelos quais ela chegou na tão temida e odiada hemodiálise não cabe nesse post, talvez num outro dia. De fato ela hoje precisa de uma máquina para filtrar todo o sangue do corpo, um dia sim e outro não, para poder viver bem. E ela escolheu viver (graças a Deus).
Eu sempre escuto de muitos DMs (e me incluo nessa massa) que uma das consequências mais fodidas e graves do diabetes descontrolado é chegar ao ponto de fazer hemodiálise. Acho que esse é o pesadelo de todo mundo que convive com essa doença. E a gente vive assim com esse tipo de pensamento porque nunca ninguém fala sobre isso, ninguém nos diz como é, o que acontece durante ou depois, ninguém nos diz como funciona.
O medo do desconhecido é de fato o medo mais burro que a gente pode sentir.
Confesso que foi libertador saber que a Juliana tem uma vida plena. Cheias de regras (como a nossa), cheia de remédios (como a nossa), cheia de enchessão de saco (como a nossa), mas é uma vida. E é uma vida que vale a pena ser vivida.
E existe MUITA VIDA durante a hemodiálise. Existe muita vontade de viver durante a hemodiálise.
Ela está esperando um rim. Embora a gente viva por ai colocando pessoas dentro de banheiras com gelo e tentando roubar uns rins compatíveis com ela pra ver se rola um transplante mais rápido, a gente ainda não encontrou nada. (e isso não eh zoeira!)
Mas voltando aqui, enquanto o rim dela não vem, ela não chora. Ela não trava batalhas, ela não cria guerras, ela simplesmente não se abate. Ela vive.
O que me inspira na história da Ju é ter aprendido que não existe “desesperança”. Aprendi que não existe “game over” enquanto houver vontade de viver. Aprendi que é possível continuar sonhando, planejando, viajando, saindo, sorrindo e amando mesmo estando no processo da hemodiálise.
Eu sei que ela precisa ficar umas 4h na máquina filtrando o sangue todo do corpo, só para viver, e é disso q ela precisa hoje, o que aconteceu no passado, o que a levou para esse processo, como foi que isso aconteceu não me importa. Não tenho dó da Ju. Não tenho pena. Não fico horrorizada, não penso “nossa, q foda”, “nossa, q bad”, “nossa, ela não deve ter se cuidado”, “Mas tbm, nunca se cuidou”, “A gente colhe o que planta” ..TUDO MERDA..
A única coisa que me importa é saber se ela fez a dialise hoje, se ela está bem, e se semana q vem a gente sair de novo. A única coisa que eu posso oferecer pra ela é um ombro, é segurar seu cabelo enquanto ela vomita, é oferecer um lenço pra ela limpar a boca, é perguntar se ela quer que eu dirija, é saber se eu posso fazer alguma coisa por ela, hoje, nessa vida, agora.
Julgar o que aconteceu não me cabe. Aprender com o que aconteceu me fortalece.
Existe vida pós hemodiálise. E existe muita vida. E ela faz questão de viver.
A complicação do diabetes não é o fim da linha. Enquanto houver vida, não é.
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